O Prelúdio I
Que é a verdade?
Elynes Barros*
A pergunta de Pôncio Pilatos ecoa sem resposta[1]…
E ela ainda, encore, en-corps, insiste hoje; é comum que os sujeitos, ao procurarem uma análise, venham em busca da ‘verdade sobre si’, ou como dizem alguns, ‘quero me autoconhecer’. Porém, Lacan adverte que esse autoconhecimento é a higiene [2] e que talvez esse conhecimento estaria mais propício ao saber médico, que lida com as doenças. Há, portanto, uma relação entre verdade e saber, mas como elas se articulariam? O que seria então a verdade como saber? Lacan responde a essa pergunta dizendo que é um enigma, um enigma que ele poderia ter enunciado de várias formas, como por exemplo: “duas patas, três patas, quatro patas, o esquema de Lacan”; ou: “é um homem, um homem quando criança de peito. Aí começou com quatro patas.” [3] A enunciação do enigma remete ao que ele elaborou como discursos. A estrutura dos quatro discursos comporta uma impossibilidade, o impossível de dizer tudo, de dizer “A verdade”. A função do enigma é ser um semi-dizer e é a mesma da verdade, que nunca pode ser dita a não ser pela metade, e Lacan salienta que nenhuma abordagem da verdade pode ser feita e ter qualquer evolução se não levar em consideração isso, de que para além de sua metade, não há nada que se possa dizer. O que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é algo da ordem de um saber e não do conhecimento e o conhecimento adquirido pelo estudo da psicanálise não alcança esse saber, por se tratar de um saber muito particular: trata-se da ligação, numa relação de razão, isto é, ligação entre duas grandezas, entre o significante S1 e o significante S2. Interrogar essa ligação, o que liga S1 ao S2, está no cerne da experiência analítica; contudo há que se deixar claro que esse saber de forma alguma poderia se constituir como uma totalidade, isso é uma ilusão. O S2 se específica exatamente por não saber tudo.[4] Mas o S2 não está sozinho; Lacan diz que a barriga do grande outro está repleta de S2! E é essa barriga repleta que dá as bases para essa fantasia de um saber tudo. É isso que está em jogo no discurso do mestre, esse querer saber tudo, que nada mais é do que o amor a “A verdade”. O que o analista institui é a histerização do discurso, que é a “introdução estrutural, mediante condições artificiais do discurso da histérica” [5]. No discurso do analista, o S2 está do seu lado, sob a barra, o que nos leva a interrogar: O que quer dizer que esse S2, no discurso do analista, venha no lugar da verdade? É justamente saber que, se essa verdade só pode ser meio dita, a estrutura da interpretação também comporta “um saber como verdade”, isto é, um enigma. É assim que a interpretação também traz a marca da castração. Se a análise não é ‘autoconhecimento’, do que se trata numa análise? Numa análise trata-se de, no giro dos discursos, operar, então, uma redução significante. Lembro de uma vez ter dito na minha própria análise “Tenho a impressão de que chego aqui arrastando um saco de pedras e volto com duas, três no bolso”. Essa redução significante possibilita cifrar o gozo, o que não é nada fácil, pois envolve uma perda, perda de gozo, e nem sempre se está disposto a perder – ‘na verdade’, é esse todo drama do neurótico, não querer perder nada, nem a bolsa, nem a vida. A redução significante opera também na liquidação do sujeito suposto saber [6], quando o analisante se dá conta do que seu analista foi para ele. Nomear o que ligou um ao outro, a suposição de saber que sustentou todo o percurso de uma análise, permite que o analisante dê o passo em direção à saída, a partir de uma dedução/redução lógica. O que se pode extrair de saber numa análise é que “o amor a verdade é o amor (…) ao que a verdade esconde, e que se chama castração” [7]. O não-querer-saber-nada-disso, ou a paixão pela ignorância, assim como “A verdade”, sustentam a impotência. E como sair disso, desse disco – dis-que (disque)[8]? A saída da impotência para a impossibilidade passa (pas – pas-de-sens – puis sans[9]) por abrir mão “d’A verdade”: passe.
[1] Referência ao julgamento de Jesus. João, capítulo 18, versículo 38.
[2] Lacan, J. O Seminário, livro 19, …ou pior. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2012, p. 215 e 216.
[3] Lacan, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970 – Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992. p. 34
[4] Idem
[5] Idem, p. 31
[6] Lacan, J. Seminário 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar Ed. 1998, p. 253.
[7] Lacan, J. Idem, p.49
[8] Lacan, J. A Terceira. In: Textos complementares ao Seminário 22- RSI. São Paulo, Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, 2022, p. 38. [9] Lacan, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970 – Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992. p. 53 e 54
*Psicanalista Membro do FCL Fortaleza e AME EPFCL
stylete lacaniano, ano 9, número 25.